domingo, 30 de outubro de 2011

Conversando sobre música

Musicalidade da vida humana
Por Marcos Cassiano Dutra

A música é uma produção cultural do homem nas mais distintas manifestações de seu fenômeno humano no mundo. É aspecto cultural, gênero artístico e expressão de linguagem. Tudo isso envolve a música e o próprio homem, que dela se utiliza para celebrar a vida e o divino, bem como em terapias médicas e processos pedagógicos, porque a música também cura e ensina.
          
No célebre filme O som do coração, obra cinematográfica Norte-americana, dirigida por Kirsten Shevidon, lançada nos Estados Unidos em 2007 e no Brasil em 2008, cujo enredo dramático-romântico é belíssimo, a música é uma constante presença do começo ao fim, sendo até relacionada ao caráter genético da pessoa, o quem vem a ser um talento, um dom, bem como uma herança. “A música é ligação harmônica entre todos os seres vivos” – exclama em determinado momento do filme um de seus personagens. Se a música é um elo ligador entre os seres vivos, logo ela é um instrumento de encontro com a própria história. Quem consegue desenvolver e aprimorar o talento musical, pode então penetrar no mais profundo de suas raízes históricas e encontrar aquilo que tanto busca em sua sina. A magia da música e o poder do amor na arte de escutar o som do coração.
            
A música como passaporte para a libertação dos sentimentos de perda, carência e solidão. De maneira indireta e peculiar, o filme questiona quem o assiste a respeito dos menores abandonados e esquecidos, dos sem família. O pequeno garoto órfão e musicista é uma alusão aos vários pequenos ignorados e amontoados em orfanatos ou nas ruas da sociedade de consumo, cuja infância é parcialmente prejudicada pela ausência das figuras materna e paterna. A canção que o coração das vidas órfãs conhecem é a canção da espera; anseiam pelo augusto dia de entoarem solenemente, na grande orquestra da vida, a sinfonia do amor encontrado, com os acordes e notas da esperança que não as fazem desanimar e perder o brilho no olhar sereno de quem só quer amar e ser amado. A esses a música é sinônimo de libertação, dado que, como diria o filósofo cristão Santo Agostinho – “Cantar é próprio de quem ama”. 
            
Por que a música parece ser uma extensão melódica do próprio homem? Como a música pode trazer em si tantos bons efeitos existenciais? A música brota da vida? Certamente a musicalidade da vida humana continuará sendo uma indagação psico-filosófica na história do homem e em suas manifestações sociais.
            
Um compositor de canções populares religiosas, Zé Vicente, em um de seus vários álbuns, assim escreve – “Cuidar da memória é condição fundamental para recriação da história”. De fato a música coopera de maneira memorial na recriação da história, seja ela particular ou comunitária, familiar ou social. Em matéria de música e humanidade é mister ter os ouvidos afinados e atentos ao som do coração,  a fim de tentar interpretar e quem sabe compreender ao menos a metade daquilo que vem a ser a musicalidade da vida humana.

domingo, 23 de outubro de 2011

Senso crítico cristão III

Caminhos de existência
O caminho carismático católico
Por J. B. Libanio, SJ

Vários movimentos o trilham, especialmente a Renovação Carismática Católica. Originou-se de “experiências de oração no Espírito”. Dois marcos miliários orientam o caminho: oração e Espírito Santo. A vida comum se envolve pelo clima de oração, que lhe dá sentido, explicação, ânimo. Repetem-se pequenas invocações que prendem a mente e criam clima espiritual. Os termos “aleluia”, “amém”, “graças” e semelhantes polvilham as orações. E, como pano de fundo, está à convicção de que o Espírito Santo penetra todas as coisas e atividades.
           
A ação do Espírito, máxime na oração de louvor, visita o fiel nas horas tristes e felizes. A realidade perde importância na sua dureza para valer mais a interpretação espiritual. O louvor tem força de transfigurar positivamente todas as coisas. A atitude permanente de louvor desencadeia enorme energia de vida. Nada abala o caminhante, porque vive na prática o retrato da vida no Espírito, traçado por São Paulo na epístola aos Romanos (Rm 8,1-39).
           
O horizonte último dessa caminhada se encontra no viver em Cristo na força do Espírito. O Jesus histórico se esfuma diante do Cristo vivenciado na fé e na confiança por meio do Espírito Santo. A experiência central orientadora é o batismo no Espírito. Por ele se inaugura vida nova.
           
A beleza e a sedução do caminho carismático lhe vêm dessa virada radical de vida. Transforma todas as trevas em luz e, ao viver na e da luz, não teme manifestar externamente tal mudança. Não a percebe como conquista própria nem como vantagem individual, e sim como obra do Espírito. A figura do Espírito tudo santifica e embeleza. Pelo batismo no Espírito se recebem dons e carismas. A vida flui com leveza interior, mesmo que o exterior pese. Tudo é obra do Espírito. 

Fonte: Semanário Liturgico-Catequético O Domingo, Paulus Editora, Outubro de 2011.

sábado, 15 de outubro de 2011

Senso crítico cristão II

Caminhos de existência
O kit religioso
Por J. B. Libanio, SJ

O caminho da atual onda religiosa mostra-se paradoxal. Religioso, mas não adscrito a nenhuma religião. A metáfora do shopping ajuda a compreendê-lo. Antes íamos à venda do interior e comprávamos aquela única mercadoria que existia. Assim a religião tradicional oferecia os produtos religiosos necessários para o fiel. Mas hoje os shoppings mudaram o hábito de compra. Algo semelhante acontece com as religiões.
           
 Elas não conseguem impor o “pacote religioso” completo pela via da lei, norma, obrigação. Flutuam bens simbólicos espirituais por todas as partes. E eles alimentam a curiosidade e sede espiritual. Cada religião possui sua butique com ofertas de mercadorias espirituais, e as pessoas escolhem-nas e fazem seu próprio kit. Uns dentro de uma instituição, outros na solidão individual criam sua própria religião, outros peregrinam por diversas religiões e lá permanecem enquanto dura a satisfação existencial. Não interessa a coerência teórica entre os elementos. Vale a satisfação existencial momentânea.
           
Os meios de comunicação, físicos ou virtuais, fazem circular por todas as partes a diversidade de propostas políticas, culturais, experienciais. A religião se torna verdadeiro laboratório de experimentação de ingredientes espirituais.
           
A fragmentação e a individualização de tal opção existencial religiosa respondem ao espírito da pós-modernidade. Cada um constrói o próprio caleidoscópio religioso com os caquinhos coloridos esparsos pela atmosfera espiritual geral. Nem faltam, em termos culturais e sociais, exibições religiosas as mais diversificadas. Há a vantagem da iniciativa e a liberdade da escolha, mas com o risco de ecletismo sem consistência.

Fonte: Semanário Litúrgico-Catequético O Domingo, Editora Paulus, Outubro de 2011.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Senso crítico cristão I

Caminhos de existência
O caminho da religiosidade pós-moderna
Por J. B. Libanio, SJ  

O regime militar desbaratou os movimentos revolucionários dos jovens das décadas de 60 e 70. Depois fracassou e cedeu o poder aos civis de maneira pouco honrosa. A democracia que veio decepcionou. O ânimo combativo dos jovens se esfriou. O inimigo se esfumou. O socialismo desabou ruidosamente. O sandinismo corrompeu-se. Fidel adoeceu e Cuba continua solitária na opção socialista. Irrompeu imenso vazio ao lado da dolorosa decepção na vida de muitos que sonhavam com o mundo justo, fraterno, solidário.  
      
Em seu lugar, o neoliberalismo triunfante impôs a lei rígida do mercado. Tudo se torna mercadoria. O consumismo cresce enormemente. Imperam a exterioridade, o marketing, a propaganda, a onda colorida midiática. Já não se consegue vislumbrar nenhum caminho de compromisso sério.    
       
Abre-se o campo para a espiritualidade pós-moderna de corte pentecostal, que invade o espaço baldio do coração da geração desiludida com a militância política.           

Onde buscar um sentido para a vida? Se os ideais maiores de ontem se perderam, não resta senão enveredar-se por trilhas religiosas que encham coração de consolação. Pululam inúmeras religiões, oferecendo produtos de consumo piedoso. O caminho espiritual se povoa de ritos, festas, aleluias. A vida, que se tornara seca, encontra sentido nessas propostas.     
    
A emoção religiosa leva a melhor no confronto com a racionalidade moderna. Esta se reduz ao mundo tecnológico, que não afeta a espiritualidade, antes lhe dispõe recursos de irradiação no campo da comunicação. A ciência, que secara a espiritualidade, transforma-se em tecnologia que a incentiva. Os recursos visuais e auditivos criam clima de alta sensibilidade espiritual.
 
Fonte: Semanário Litúrgico-Catequético O Domingo, Editora Paulus, Outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Celebrando a Padroeira do Brasil

Aparecida: grandeza e pequenez
Por Dom Eduardo Koaik
Bispo emérito da Diocese de Piracicaba

No Brasil, seu nome, o da padroeira, é Nossa Senhora Aparecida. No México, de Guadalupe; na França, de Lurdes; em Portugal, de Fátima... Em cada nação toma o nome que a identifica com o seu povo e com cada uma das raças. Na África, é de feição negra; no Extremo Oriente, de cor amarela e olhos rasgados. Os missionários europeus, quando de lá partiram, só conheciam a Madonna de seus renomados artistas com traços fisionômicos da mulher de sua gente. Como explicar esse extraordinário fenômeno de verdadeira inculturação da “Imagem” da mãe de Jesus? Os filhos querem a Mãe parecida com eles.
Ela pode ser de origem judia, mas, no Brasil, nós a sentimos mais próxima do nosso povo “esparramando sua cor na vida de nossa gente... que anda sem rumo... procurando terra, pão, melhores dias”. Foi uma aparição diferente das demais que entraram no culto público da Igreja. O sinal do prodígio: uma pequenina Imagem de Nossa Senhora da Conceição retirada do fundo das águas do rio Paraíba, outubro de 1717, junto ao porto de Itaguaçu, próximo à Vila de Guaratinguetá. Ela foi recolhida pela rede de rasto, lançada pelo pescador João Alves. Em sua companhia estavam outros dois amigos de profissão: Domingos Martins Garcia e Filipe Pedroso. Os três, homens simples, dedicados ao trabalho e religiosos, haviam sido convocados a apanhar boa quantidade de peixes para a refeição do Governador, o Conde de Assumar e sua comitiva, de passagem por esta Vila em demanda das Minas Gerais.
Como a Imagem foi parar no fundo do rio é uma história cercada de lendas. De sua origem, no entanto, sabe-se tudo. Segundo estudiosos da imaginaria brasileira do período seiscentista, século XVII, a Imagem é moldada em barro paulista, que depois de cozido, se torna cinza claro. Pelo fato de ter permanecido, por muitos anos, no lodo das águas, adquiriu a cor castanho brilhante que, até hoje, conserva. Sabe-se, também, que foi esculpida pelo ceramista monge beneditino carioca, Agostinho de Jesus, pelo ano de 1650. Entre os detalhes determinantes destacados por peritos estão a forma sorridente dos lábios, “a perfeição das mãos postas, pequeninas e afiladas como as de uma menina, as mangas simples e justas, de muito requinte, terminando no punho esquerdo dobrado”.
O que mais nos interessa nessa exposição é poder dizer, com fatos comprovados por documentos, que se sabe tudo, também, de como foi achada a Imagem. Nas circunstâncias acima referidas, os três pescadores iniciaram a pescaria seis quilômetros antes do porto de Itaguaçu. Vinham, rio acima, sem tirar peixe algum. “João Alves lançando a rede neste ponto tirou o corpo da Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede tirou a cabeça da mesma Senhora”. A narrativa singela e curta, em estilo agradável e fluente, redigida pelo Padre João Morais de Aguiar encontra-se no Livro Tombo da paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, agosto de 1757, conservado no Arquivo da Cúria de Aparecida. O desfecho da pescaria e do achado da Imagem que o pescador levou em sua canoa, deu-se assim: “Não tendo, até então, tomado peixe algum, dali por diante foi tão copiosa a pescaria em poucos lanços, que receoso, e os companheiros de naufragarem pelo muito peixe que tinha nas canoas, se retiraram a suas vivendas admirados desse sucesso”.
Estamos diante de um acontecimento envolto em fatos prodigiosos mas despidos de gestos espetaculares. Eles nos revelam os feitos maravilhosos da ação celeste que, ao longo do tempo, foram-se desenhando, pelas mãos maternas de Nossa Senhora, até chegar no que vemos hoje concretizado na imponente Basílica de Aparecida. Tudo é grande nos seus espaços externos e internos para mostrar a grandeza do coração da Mãe que acolhe a multidão de filhos. Só Ela é pequenina naquela frágil Imagem de cor morena, achada em pedaços no fundo das águas do rio e entronizada no altar-mor do majestoso templo. Nestes sinais temos, mais uma vez, a lição de como Deus exalta a pequenez olhando para a humildade da sua serva e levando todas as gerações a proclamá-la “a bendita entre as mulheres”.

Devoção e culto a Nossa Senhora

A importância da devoção mariana na vida da Igreja
Por Marcos Cassiano Dutra

Devoção significa sentimento religioso; piedade. Importância quer dizer grande valor. Estas duas palavras se relacionam de forma teológica propícia e interessante quando se referem a uma figura seminal apresentada pela Sacra Página (Sagrada Escritura) no desenvolver da história da salvação. A figura bíblico-histórica é Maria de Nazaré, a mulher bendita entre todas, a nova Eva, a Santíssima Virgem Imaculada, a quem a Igreja presta um culto de veneração todo especial.
           
Diz a Constituição Dogmática Lumen Gentium – “A Igreja, contemplando a santidade misteriosa de Maria, imitando a sua caridade, e cumprindo fielmente a vontade do Pai, pela Palavra de Deus fielmente recebida torna-se também ela mãe: pela pregação e pelo Batismo gera, para uma vida nova e imortal, os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus. E é também Virgem, que guarda a fé jurada ao Esposo, íntegra e pura; e, à imitação da mãe do seu Senhor, conserva, pela graça do Espírito Santo, virginalmente íntegra a fé, sólida a caridade, sincera a caridade”.
           
Maria prefigura em sua vida exemplar à imagem da própria Igreja, esposa de Cristo, por isso sua devoção, espalhada por todo o mundo cristão em cada santuário ao seu patrocínio dedicado, é fonte virtuosa que educa os fiéis cristãos na prática das virtudes teologais e principalmente na eclesialidade, elemento essencial para uma catolicidade vigorosa, evangélica e missionária. Quanto mais a Igreja se aproxima de Nossa Senhora, tanto mais ela se torna santa diante de Deus que a quis e da humanidade a quem ela apascenta por mandato divino de seu fundador, nosso Senhor Jesus.
           
Assim expressa São Luís Maria de Montfort em seu Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem: “Esta devoção (a de Maria) é um meio seguro para ir a Jesus Cristo, porque é próprio da Santíssima Virgem conduzir-nos com segurança a Ele, como é próprio de Jesus conduzir-nos seguramente ao eterno Pai” (VD, 164). Contemplando e celebrando na liturgia da vida e do Altar as glórias de Maria, a Igreja enxerga na face maternal da Mãe do Redentor a sua específica fisionomia de ser mãe e educadora da cristandade, conduzindo, de maneira sacramentada, o povo de Deus ao encontro escatológico do Verbo humanizado e revelado na história do homem.