sábado, 10 de setembro de 2011

uma reflexão sobre a fé

A problemática da fé
Por Marcos Cassiano Dutra

É parte integrante da natureza humana a crença como um elemento de transcendência, do sobrenatural que envolve o natural humano. Dentro da prática da crença há a fé, como força fomentadora do aspecto religioso do homem nas suas várias manifestações culturais. A fé proporciona ao crente uma esperança final em algo maior que vai além dos fenômenos naturais humanos, como a morte. Tornando-se uma consolação diante das angústias existenciais pelo desconhecido.
           
 A vida é a realidade material e campo fértil onde a semente da fé encontra os minerais necessários ao seu desenvolvimento religioso. É na vida do homem que ela vai se desenvolvendo paulatinamente e se fundando como algo especial, como um patrimônio espiritual de uma tradição (transmissão) que lhe fora anteriormente feita aos poucos, seja pela sociedade ou pela família, instrumentais do ensinamento religioso da fé. Segundo uma premissa de Karl Marx, “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser social, mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência”. Tal consciência social do homem também se funda dentro de sua religiosidade, a qual transparece em seu ser social, em suas ações sociais.
           
Então a fé é um dado cultural da sociedade? Sim! No sentido de que ela está presente em variadas culturas (multiculturalismo religioso) e, em cada uma, a fé é interpretada e exercitada de maneira muito peculiar, específica. Santo Agostinho, um dos grandes filósofos e teólogos da Patrística Cristã, diz em uma máxima que é preciso “compreender para crer e crer para compreender”. Torna-se dificultoso o estudo das manifestações religiosas da fé se não se acredita no aspecto escatológico que ela contém, sem isso, a compreensão, isto é, a análise do tecido religioso, fica prejudicada e parcial, porque se anula um dos caracteres essenciais da fé: o transcendente.
           
A fé, elemento cultural da religiosidade de um povo (de uma sociedade), sempre está envolta por uma doutrina. O Dicionário da Língua Portuguesa define a fé como crença nas doutrinas religiosas. Portanto, a doutrina tem um papel importante no universo da fé, por quê? Porque a doutrina é a responsável pela organização lógica e até mesmo jurídica da fé na crença religiosa, haja vista os preceitos religiosos. Porém, não são todas as doutrinas que estão estruturadas em forma de instituições religiosas, logo há expressões da fé religiosa que são doutrinadas, mas não institucionalizadas e outras que são doutrinadas e resguardadas por alguma instituição com legados próprios e hierarquias próprias. A problemática da institucionalização da fé é um assunto polêmico dentro do ambiente religioso, mas ao mesmo tempo interessante e oportuno, porque questiona a influência da instituição no pensar religioso de um povo, de uma civilização. Influência que culturalmente pode deturpar elementos fundamentais e até mesmo teológicos da fé em alguma expressão religiosa, tornando a fé uma mera legitimadora da ordem estabelecida, ou seja, de um poder religioso temporal instituído; o que esvazia o conteúdo atemporal que a fé traz em si por índole. Por outro lado, é inegável que a instituição religiosa é a responsável direta na difusão e consolidação da fé, dando a ela uma abrangência maior, global, diante da qual ela de forma processual tenta se inculturar para não perder seu significado diante de outras expressões culturais e religiosas.
           
Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Tais perguntas do próprio homem permeiam o ambiente religioso e a prática da fé, e, são o pontapé inicial e filosófico de uma argumentação teológica. Se a fé doutrinada é institucionalizada, as respostas serão distintas se caso ela for doutrinada e não institucionalizada. Portanto, a problemática da fé vai além da compreensão cultural e transcendente, ela também perpassa uma compressão histórico-dialética do dado político-diplomático que circunda sua forma de se apresentar a humanidade, aos fiéis e até mesmo aos infiéis, ou seja, os não-crentes ou ateus, visto que toda a instituição religiosa é envolta em aspectos políticos de organização de sua estrutura enquanto uma instituição, o que influência indireta e diretamente a fala religiosa que expressa uma fé, porque os interesses religiosos também se fazem presentes no discurso religioso, mesmo que de maneira subliminar, constituindo assim uma ideologia. Portanto, é necessário que cada instituição sempre esteja atenta a esse respeito, a fim de realmente zelar pela fé e não torná-la um instrumento para manutenção de um poderio.
           
Ainda sobre a institucionalização da fé é oportuno ressaltar um fenômeno religioso que é a ortodoxia, algo presente nas expressões de fé que são institucionalizadas. A ortodoxia não considera válido e teológico, em seu ponto de vista, práticas religiosas não-insitucionalizadas, e disseminam essa idéia segregante em seu discurso considerando-as seitas. A fé que não pertence a instituições se vê, portanto excluída do mundo das grandes religiões. Devido sua capacidade criativa de sincretizar-se ela se faz presente nos ambientes mais populares, nas periferias religiosas da sociedade, ao passo que a fé institucionalizada fica restrita a uma aristocracia social como sendo uma “fé oficial” de determinada sociedade, o que é um atentado contra a fé, porque proporciona e falaciosamente legitima uma divisão de classes em nome “Deus”.
           
Em suma, a fé é um tesouro da humanidade e não de instituições religiosas somente. As instituições têm sua funcionalidade e finalidade, dado que não existem por obra do acaso, e sim de uma construção histórica importante, todavia não são o sustentáculo essencial da fé. São instrumentos da fé e não as donas ou proprietárias exclusivas dela. A fé transcende a instituição, porque seu conteúdo é universal, porque sua crença é o mistério, o qual se faz presente em todas as culturas e civilizações. Querer defender uma tese maniqueísta de religião e fé é um equívoco diante das potencialidades religiosas que cada expressão específica da fé, sejam elas cristãs ou não, tem a contribuir para com a sociedade hodierna em seus desafios. Nessa perspectiva, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso são iniciativas plausíveis, porém não constitui o todo da convivência e respeito mútuo entre uma fé e outra fé. É o início de uma relação que se amplia mais na medida em que cada religiosidade reconhece na outra os sinais transcendentes da palavra-chave de ambas: o divino.   
           
Cada instituição religiosa é chamada a co-responder aos apelos fideísticos de sua expressão religiosa, que em substância é a prática de algo bom, de virtudes, pois a fé busca conduzir o homem, sujeito e protagonista do mundo, a uma condição de vida que o possibilite edificar uma realidade mais fraterna, mais humana. Somente entende esta dinâmica religiosa quem observa com atenção as palavras já citadas de Santo Agostinho, crendo para compreender e compreendendo para crer que é possível a unidade religiosa entre a diversidade das crenças e instituições.

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